O milagre

O som da chuva cai lá fora. Aqui dentro eu observo tudo, atenta. O cachorro late entediado, não aguenta mais sua prisão caseira. O choro do bebe vem fraquinho lá dos fundos. Um trovão abala as finas paredes da casa. Minha garotinha vem correndo se esconder entre minhas pernas. Pego-a no colo e passo para o outro cômodo da casa. O benheiro e quarto para o bebe. Ali chove menos. O bebe chora. Um choro sentido da fome de quem não come há muito tempo.
Passo-lhe a mão sobre a cabeça, e cantarolo uma cantiga. Espero que volte a dormir. Não tenho comida para dar-lhe. Não até que o marido volte, isso, se voltar. A pequena em meu colo também clama por comida. Mas nada a para se fazer, apenas esperar e esperançar. Volto com a pequena para a sala/quarto/cozinha. Aninho-a em meu colo, sentada no chão velho e puído, apoiada na parede cinzenta e úmida. Canto com a voz embargada de pesar e choro.
Até o cachorro silenciá-se, mortificado com a fome. A chuva cada vez mais forte lava o mundo manchado de miséria. As horas passam maçantes e pesadas. A chuva não nos da trégua. Velo o sono de meus filhos. Atenta a porta e a janela. Enchentes são tão comuns nessa parte da cidade, e tão perigosas também.
Um alto ruído na direção da porta chama minha atenção. Com uma batida forte a porta abre. O escuro da rua entra na casa. O vento forte arrasta a chuva e tudo em seu caminho para dentro. Não consigo ver o que ou quem está entrando. Com o corpo protejo-a. O cachorro late enfurecido. Protegendo-nos do estranho. Ele bate a porta com força. Mais do que usou para abri-la. Sinto a casa tremer. As paredes finas balançam. A chuva castiga-nos. Ele avança a passos pesados. Ao entrar na luz vejo seu rosto. Castigado pela vida, pelo tempo. Meu marido. Acabado e cansado pelas muitas horas de trabalho. Pela longa viagem de volta pra casa. Levanto-me rapidamente. Olho esperançosa para ele. Ansiosa por noticias. Necessitada de comida. Ele sorri triste. Olha para baixo. Sua mochila de trabalho. Ela está abarrotada. Estourando. Espero apenas que seja de comida. A pequena acorda em meus braços. O cachorro pula e late alegremente. Pressentindo o que está prestes a acontecer. Passo a menina para meu marido que segura-a fortemente. Pego possessivamentea mochila. Meus dedos tremem de ansiedade. O peso é muito. Sento-me no chão com ela bem presa em meus braços. Puxo o ziper e faz-se o milagre da comida. Toda uma cesta basica. Ali, bem na minha frente. Deixo a mochila ali no centro da sala e corro pegar meu bebe. Hoje é dia de comer.

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