Tardes...

A cama toda bagunçada, estou jogada de qualquer jeito sobre o lençol bagunçado. Lá fora o céu está claro e azul. O calor do sol entra pela janela aberta, um sabado parado de tão calmo. Ele entrou no quarto e sentou-se na cadeira, esticou as pernas e apoiou-nas na cama, sorriu-me.
Suspirei cansada antes de esticar-me e pegar o violão ao lado da cama. Ele pegou-o de mim e olhou-me esperando que eu lhe dissesse a música a tocar. Revirei os olhos impacientes e encarei o teto, meus pensamentos voltados para nada, era só o que queria, nada. Ficar lá deitada, olhando o céu, sentindo uma suave brisa e aconchegante calor do sol, que esporadicamente chegava até mim.
"Não seja tão teimosa", ele sorriu antes de começar a tocar. A melodia suave espalhou-se, sua voz grave e conhecida murmurava uma canção que eu conhecia tão bem. Sem resistir, comecei a cantar timidamente.
"Porque você me deixa tão solto", minha voz somada a dele não era assim tão ruim embora nenhum de nós cante bem. A música terminou e eu ri para ele.
"Seu idiota, sabia que eu não resistiria"
"Sua idiota, é claro que eu sabia"
Rimos juntos, e agora mais acordada, sentei-me para contar-lhe minha noite anterior. Ele dedilha no violão alguma música boba e infantil dos desenhos que costumavamos assistir. Suspirei, tomando folego para contar, nossas atuais fofocas nada tinham com os infantis contos e aventuras de antes. Haviamos crescido, e mesmo assim, eramos os mesmos, ou quase.
Outro dia chegou e passou ao lado dele, como tantos outros. Como tantos outros. Minha mãe busina na frente da casa, eu rapidamente abraço-o bem apertado, em uma semana podei vê-lo novamente. Desço as escadas correndo, um beijo na irmã dele outro na mãe, um abraço para o irmão e corro porta afora. Ele está na janela e me da adeus, mas eu sei que é apenas um até logo.

Escritora

As paredes reverberaram com a força da batida. O som da porta contra o batente estendeu-se por toda a casa. Olhou rapidamente de um lado para o outro do quarto. Atravessou o quarto em três passos. Abaixou-se e puxou a mochila que estava jogada em baixo da cama. Virou-se e começou a jogar para dentro as coisas de que precisaria. Calcinhas, carteira, meias, jeans, sutiã, camisetas, escova de dente, um casaco, o álbum de fotografias, o caderno, uma caneta. Incessantemente olhou de um lado para o outro. Buscava qualquer coisa importante que tivesse por acaso deixado para trás. Viu jogado sobre a cama bagunçada o computador portátil. Um notebook que ganhara três natais antes. Colocou-o na mochila. Certa de que nada ficara para trás, foi buscar seu bem mais precioso. Pegou com cuidado a câmera, colocando-a na capa de proteção. Meteu-a também na mochila, com cuidado. Colocou a mochila nas costas e subiu na janela. Por um segundo parou. Por um último segundo olhou com carinho para o quarto que durante tantos anos havia sido seu refugio, sua fortaleza, sua prisão. A nostalgia abateu-se sobre ela por um segundo. E então, passou. Pegou a pasta que estava sobre a mesa. Saltou para a noite.


Sentiu-se afundar um pouco quando seus pés tocaram a terra molhada. Dentro da casa os gritos recomeçaram. Não olhou para trás. Apenas começou a correr. Chegou, escalou e saltou o muro com a mesma facilidade que tivera com a janela. Alcançou a rua. Olhou para os dois lados antes de continuar. Com passos rápidos ganhou a noite. Seu coração disparado pela adrenalina. Seus passos velozes pelo desespero. Suas mãos tremiam. Seus olhos ardiam.

Respirou fundo, absorvendo a noite. Olhou para o céu. A noite estava nublada, não se viam estrelas. Continuou seguindo em frente, não olhava para trás. Seus passos agora diminuíam de velocidade. Não mais corria ensandecida pela rua. Andava, quase calmamente. Levou tempo para olhar ao redor. A rua quase sem iluminação. Deserta. Quase não se percebia vida ao redor.

Talvez não tivesse sido tão boa idéia fugir assim, de noite. Apressou novamente os passos. O coração voltou a disparar. As mãos a tremer. A adrenalina bombeava-lhe para frente, seguindo.

Se antes por ansiedade, agora por medo. Segurou firmemente com as duas mãos a pasta com todos os seus escritos. Acalmou-se. Lembrou de seu objetivo. Sair daquela vida. Deixar tudo para trás. Seguir em frente. Ganhar o mundo. Olhou novamente para o céu. A lua ganhara as nuvens, e exibia-se pálida e solitária em meio ao negrume da noite.

Abaixou os olhos dos céus, tinha que manter-se firme a terra. Seus olhos pousaram nos ponteiros do relógio. O susto, o pavor. Teria que correr se não quisesse perder o ônibus. Patinando pelas ruas molhadas, correu o máximo que pode. O máximo que a água, terra, folhas mortas e pedras lhe permitiram. Maldita falta de civilização. A raiva, o ódio, o rancor, reacenderam-lhe na alma. Correu mais.

Chegou ofegante no ponto de ônibus. Seu peito arfava dolorosamente. Não se importou. O ônibus acabara de chegar. Sorriu radiante. Saltou. Perdeu seu chão de terra. Ganhou o chão de metal firme da civilização. Andou desajeitada pelo ônibus vazio. Entregou o dinheiro para o cobrador. Sentou-se no meio do ônibus, num lugar vago a janela.

Pela primeira vez na noite, sentiu-se realmente bem e segura. Sabia que seguia para um caminho totalmente desconhecido e sozinho, mas mesmo assim, muito melhor que a corrente de gritos e grilhões que tinha na grande casa velha.

Ajeitou-se no acento pensando em tudo o que deixara para trás. Os pais briguentos e ultrapassados. Os irmãos machistas e arrogantes. O bairro afastado que mais parecia uma pequena aldeia medieval. A casa grande, imponente, e caindo aos pedaços. O preconceito e julgamento de uma população que parara de viver no século dezenove. A falta de compreensão, dos professores, da diretora. Os xingamentos e amolações dos colegas da escola. A inexistência de amigos. A solidão praticamente absoluta que vivia. Não agüentava mais. Não podia mais. Era diferente, sabia disso, mas não justificava o tratamento de infecciosa que recebia.

Lembrou-se da única luz em sua vida. A pequena irmã. Machucava-lhe deixá-la para trás. Mas não sabia como seria sua vida daqui para frente, como imporia para a irmãzinha o mesmo tipo de vida? Não, era melhor assim. Por enquanto.

Como toda família de destaque tradicional, a sua era basicamente machista. Prezava os filhos homens acima de tudo. Apenas esperava que suas filhas fossem belas e educadas o bastante para arrumar bons maridos. Eles ainda tinham a ousadia de dizer que viviam no século vinte e um. Para desgosto absoluto de seus pais, ela nascera antes de todos os outros. Uma primogênita. Uma desgraça para a família. Para aumentar a desgraça, o irmão gêmeo morrera no parto. Ela a irmã ingrata, a filha, a mulher, sobrevivera. Com o passar dos anos, filhos homens nasceram para fazer a alegria dos velhos. Enquanto ela era deixada de lado, a sua própria sorte. Sozinha, solitária. Por um lado aqueles foram os piores anos de sua vida. Por outro, foram os melhores. Até os doze anos. Nessa época nascera sua pequena luz. Uma irmã. Foi igualmente desprezada pelos pais, pelos irmãos, mas não por ela. Teriam sempre uma a outra. Até agora. Seus olhos arderam até derramar uma lagrima, a primeira em muitos anos. Não chorava por si, mas pela pequena que abandonara.

As luzes do centro começaram a brilhar mais perto. Secou sua lagrima. Afastou os pensamentos de seu passado. Tinha que pensar em si. Um silencio arrasador tomou conta dela. Seus pensamentos sempre a mil por hora, agora se mantinham quietos, afastados, indiferentes. O ônibus seguira seu exemplo. Antes tomado por cochichos e risos, agora se mantinha estranhamente quieto. Uma aura de ansiedade e nervosismo circundava o lugar. Olhou pela janela. Cada vez mais perto das luzes, que incessantemente brilhavam.

Eram promessas de futuro, de diversão. Cada pequena luz que brilha na escuridão, é uma pequena promessa de chance. E como uma onda de prosperidade, as luzes invadiram todas juntas o ônibus escuro. Era um mar de cores e brilhos. Através da janela podia ver. Os luminosos grandes e coloridos. Cada um mais brilhante e chamativo que o anterior. Propagandas gritavam, chamavam, em cores berrantes, qualquer coisa que atraísse alguém.

Dentro do ônibus, uma profusão confusa e colorida de cores piscava. Horas com mais cores do que imaginava ser possível, e algumas horas, sem cor alguma brilhando. Nessas horas, que não passavam de minutos, onde ficava imersa em escuridão, enquanto o mundo lá fora brilhava em alegria e promessas, nessas horas sentia medo. Medo de se perder nas promessas coloridas, e acabar com apenas isto, promessas coloridas.

Pegou o celular e procurou em sua lista de contatos um nome. O único nome que realmente poderia ajudá-la. Conhecera-o alguns anos antes, em um dos muitos festivais que participara. Ela impressionara-se com sua experiência e talento. Ele impressionara-se com seu sobrenome. Normalmente isso a teria tirado do serio, e feito com que se irritasse, mas na ocasião percebeu que aquela seria a única forma de chamar a atenção dele. Continuaram em contato, por e-mail.

O nome dele piscando na tela de seu celular. Ligar. Colocou o aparelho no ouvido e esperou. O som do chamado a torturava, ainda era cedo, não passavam das nove da noite, porque ele simplesmente não atendia logo o telefone? O medo rodeou-lhe, cercando-a em territórios cada vez menores. Aproximando-se. “Alo?” ele atendeu risonho e incerto, provavelmente estava bebendo, pensou irritada.

“Eu aceito. Estou aqui.”. Ela disse rápida e objetiva. Não precisou dizer quem era, ele sabia. Por uns instantes ele não respondeu. Ela quase podia ver a sua expressão, em um misto de impressão, espanto e incerteza.

“Onde?” ele sussurrou refazendo-se do susto.

“Em frente ao Plaza”. Ela desligou sem esperar resposta, sem se preocupar em ser educada. Sabia que era esse tipo de atitude que ele esperava dela. Uma rica e mimadinha garota de uma antiga importante família. Ele não sabia de nada. “E também não precisa saber”, pensou com amargura. Vislumbrou de longe a frente do imponente hotel. Lembrava-se dele de sua infância. Os finais de semana na suíte da família, apenas para que os pais e os irmãos fossem a alguma festa, apresentação ou evento idiota. Ela sempre ficava no hotel. No começo por deixarem-na abandonada, depois, por birra. Ela, quando crescera, tornara-se uma garota que não era de todo feia, e arrumada tornava-se até bonita. Seus pais queriam exibi-la por ai. Apenas um rostinho agradável de olhar. Levantou-se com raiva, e apertou o aviso para o ônibus parar. O motorista freou com brusquidão, e ela perdeu o equilíbrio. Voou para frente, e conseguiu apoiar-se em um dos cabos de segurança antes de cair estatelada no chão. Mas não antes de deixar cair sua pasta com os contos, poemas e crônicas. Com um sorriso amarelo, envergonhado, abaixou-se, pegou suas coisas e desceu do ônibus em frente ao grande hotel.

Sabia que não estava vestida de acordo. Sabia que olhariam torto para ela, como se ela não pertencesse àquele lugar. E sabia também que tudo mudaria quando exigisse a suíte da família e provasse ser quem era. “Primogênita da grande família Oliveira e Andrada”, pensou com nojo. Sentia-se constante nauseada. Tinha a impressão que iria vomitar ou chorar, dava no mesmo, toda a vez que era obrigada a pronunciar em alto e bom som seu nome. Isabel Cora O’Bard de Oliveira e Andrada. Ou como seu pai a apresentava, Isabel de Oliveira e Andrada. Isabel. Odiava seu nome. “O nome de uma princesa”, dizia sua avó quando ela era pequena. “Princesas vivem em castelos”, ela respondia “e são amadas e queridas” acrescentava para si. Entrou no hotel.

Dirigiu-se para a recepção. E antes que fosse enxotada dali pelos seguranças, colocou sobre o balcão sua identidade e pediu um quarto. A recepcionista pegou a identidade com certo asco, mas mudou totalmente sua expressão quando viu ali o maldito nome estampado. Passou a ela um cartão e a identidade. Isabel devolveu-lhe um sorriso que estava entre o nojo e a ironia. Pegou o que lhe era devido, virou as costas e saiu dali o mais rápido que pode.

Àquela hora os hospedes estavam jantando ou então em alguma festa importante e imprescindível, por um motivo que apenas eles sabiam e que ela não se preocupava em saber. Pegou o elevador sozinha, e subiu para o décimo primeiro andar. Poderia seguir até mesmo vendada para o quarto que a família costumava ficar. Tantas vezes seguira por aquele caminho. Quarto seiscentos e sete. Entrou jogou a mochila no sofá, atirou a pasta sobre uma cômoda e jogou-se na cama grande e confortável. Pegou o celular novamente, e começou a digitar uma mensagem. “Estou no quarto 607. Não venha hoje.”. Enviou-a, desligou o celular e atirou-o junto da mochila, sem realmente importar-se. Empurrou os tênis com os pés, apagou as luzes e perdeu-se no meio da gigante quantidade de cobertores e almofadas. Quando teve certeza de estar sozinha com as sombras do quarto, chorou até cansar-se. Com os olhos inchados, doloridos, a garganta embolada, a face encharcada e o corpo exaurido. Completamente cansada e exausta, ela caiu em um sono sem sonhos.

(contiua)