Pequena


Ela estava tímida e meio encolhida, parecendo ainda menor, em um canto do quarto de costas para ele. Tentava, em vão, esconder uns ursinhos antigos e velhos. Ele poderia apostar que cheiravam como ela. A visão fazia-o rir, encostado no batente da porta olhando-a atentamente, seguia com os olhos os movimentos cuidadosos e apressados que ela tinha com os ursos. Acostumara-se com ela despreocupada sorrindo e falando mais e mais rápido que uma pessoa normal conseguiria.
Vê-la encolhendo-se e acanhada era realmente diferente. Ele quase não podia acreditar que ela era capaz de sentir vergonha ou ficar encabulada. Ele sorriu e pensou: “Afinal de contas, ela é uma garota como qualquer outra, e é possível sim envergonhá-la” e no segundo seguinte condenou-se pelo pensamento. “Ela não é como qualquer outra”.
Afastou-se do batente e a passos lentos. Aproximou-se dela sem fazer barulho, mas não foi o bastante, como se sentisse a presença dele virou-se para encará-lo. O sorriso encabulado ainda estava lá, mas os olhos estranhamente claros emitiam uma luz mais calma, como se a presença dele a acalmasse. Ele riu alto e a puxou para perto, ela deixou-se levar e bateu de encontro ao peito dele no mesmo momento em que ele a segurava protetoramente.
Ele abaixou a cabeça e beijou o topo da dela. Ela era pequena, mal batia na metade de seu peito, e no meio de seus braços, ela parecia ainda menor. Olhando para cima com os olhos grandes e sinceros ela sorriu, como se pedisse desculpa. Seus lábios começaram a formar uma desculpa pelo quarto cheio de brinquedos quando ele colocou os dedos sob sua boca e a impediu de falar.
“Não importa, eu gosto, faz parte de você”.
Ela suspirou aliviada, mas ainda assim não parecia completamente relaxada. Ele sentou-se na cama e puxou-a para junto de si, gostava dela assim, no meio de seus braços. Ela enroscou-se nele como apenas ela era capaz de fazer, quase como se enlaçasse os dois em um nó justo. Ele riu e acariciou os cabelos dela enquanto distribuía os beijos por seu rosto levemente rosado pela timidez.
Ele ria-se e divertia-se cada vez que ela corava ou se contraía de vergonha, adorava saber o modo como a afetava, assim como adorava o modo como ela o afetava. Às vezes ele achava que ela não tinha a menor ideia de como o provocava, mas então ela vinha com uma daqueles pequenos sorrisos que apenas era capaz de sorrir. Um sorriso metade mulher, metade menina.
Mais a vontade, relaxada e acalmada pelos carinhos, ela começou a soltar-se e retribuir os carinhos, os beijos. Ele sorriu e aperou a cintura dela, e foi retribuído com um beijo na orelha dele. Finalmente relaxada e em seu estado natural, ela jogou a cabeça para traz e riu enquanto ele beijava seu rosto. Brincavam de rato e gato, sem querer fugir um do outro, sem querer se afastar, sem querer ficar longe.
“É tão bom aqui” ela sussurrou suavemente, passando as mãos pelos cabelos dele, cantarolando uma música antiga. O timbre da voz dela era calmo e tranquilo. Era familiar, como algo frequente, algo que ele conhecesse a vida toda. Era natural apoiar a cabeça no ombro dela e se deixar acariciar por ela, com os carinhos cuidadosos e delicados.
“Me fala de você” ela pediu delicada, continuando a cantarolar e passar as mãos pelos cabelos dele.
“O que você quer saber? Pode me perguntar qualquer coisa, falar com você é tão fácil que eu sinto que te contaria qualquer coisa”.
“Me conta da sua infância, do seu irmão, do seu sorvete favorito, o que você gosta de fazer... não sei... Me conta tudo, eu quero saber tudo”
Ele riu e a apertou de encontro a si, não tinha muito que contar além de tudo o que ele já havia dito. Ele mal acreditava que havia contado sobre toda sua vida pra ela, e em tão pouco tempo. Uma semana não é tempo, mas ainda sim, entre eles havia sido. Perdido em pensamentos, não notou quando ela se desenroscou dele, levantou-se e o puxou para fora.
Ela deitou-se na grama, os cabelos espalhados, as roupas desarrumadas e amarrotadas. Ela não disse nada, não se mexeu, simplesmente olhou-o convidativamente, ele riu e não esperou uma segunda indicação. Deitou-se ao lado dela no quintal, o sol sumia no horizonte, e a lua aparecia timidamente no céu que começava a escurecer e revelar as estrelas escondidas pela luz do dia.
Como em um sonho que se desfaz com a manhã, ela ficava pálida e quase translúcida ao brilho da lua e das estrelas que agora brilhavam absolutas no céu. Uma noite clara de lua cheia, ela sorria e brilhava, transparecia felicidade. Não era compreensível e não tinha que ser, era algo deles e entre eles que só precisava ser sentido. Pensar era obsoleto, sentir era natural e agir era apenas uma consequência automática.
Seus lábios tocaram os dela, leve, suaves, e com uma brisa suave, uma garoa fina e uma música sussurrante ela foi-se. Quase não saberia dizer se era sonho ou realidade, se era verdade ou mentira. Ela sumia pelo tempo que tinha que sumir, e voltava quando era hora de voltar. Nunca ficava mais tempo que o necessário, mas também nunca partia antes de precisar. Ele não tentava segura-la, não tentava detê-la, aceitava o tempo que tinham, sem pensar no futuro, apenas ansiando pelo depois. 

Sentimentos Truncados


Das palavras que eu nunca soube falar
e dos sentimentos que sempre mantive
Você foi o último a desvendar
uma verdade a muito perdida, de mim 
inclusive

Desse meu jeito desajeitado
nunca tive a coragem
De expor o sentimento trancado
você é o dono e o portador da miragem
deslocada

Foi preciso apenas um de seus sorrisos
e de repente eu já não estava mais pensando
Meu coração perdido, apaixonado por seus risos
tão facilmente arrebatado
por você, capturado

No começo era medo
mas depois era mais, algo que não ouso nomear
Só peço, com lágrimas, que continue esse enredo
uma história em seu começo não merece terminar
tão cedo

Um beijo e um pedido é tudo
por enquanto não parta
Ainda a tanto a ser descoberto, contudo
o que a noite promete, e o dia guarda
são promessas de um futuro que começa.

Despertar de um Adeus

Ela não dizia não, apenas sorria. Também não dizia nada, apenas ia embora. Era seu jeito de ser, achava ser o melhor jeito para agir. Nem todos entendiam, muitos corriam atrás. Poucos percebiam que aquele aceno era um adeus, e não um até mais.

De longe tão encantadora, mas nunca chegara perto demais. Talvez pelo medo que sentia, talvez pelo amor que não queria. Não fazia promessas, não deixava esperança, era uma noite e apenas. Às vezes semanas, às vezes meses, não tinha pressa e nem tempo para ir. Sabia apenas, qual era sempre, o momento certo para partir.

Se pudesse dizer, diria desculpe. Se pudesse contar, seriam seus medos. Se pudesse parar, livrar-se-ia de seus segredos. Se pudesse deixar, daria seus sentimentos. Mas não podia e morreria antes de confessar que queria. Era apenas tão complicada quanto seus medos, e tão instável quanto suas inseguranças.

Quase não se lembrava do começo, fazia tanto tempo. Agora era só mais uma parte de sua natureza. Chovia. Correu porta a fora e deitou perto das flores olhou para cima. Atrás do manto de d’água escondiam-se as estrelas que tanto gostava. Tentou lembrar-se de como era o céu, sem a chuva e a neblina, não conseguiu. Desenhou em sua mente como seriam as estrelas, suas estrelas, brilhando na sua noite, do jeito que sua imaginação criará. Noite clara o bastante para espantar seus medos, bela o suficiente para não querer acordar nunca.

“É tão fácil sonhar e viver esquecendo da realidade”. Racionalmente sabia que apenas estava apunhalando-se. Talvez de nada adiantasse suas certezas e definições. Quem sabe com quais ilusões agarra-se a realidade.

Levantou e observou as flores, ao seu lado o silêncio e a solidão brincavam entre os lírios. Leais companheiros, porém, exigentes e possessivos, com o tempo acostumara-se com ambos. Caiam as últimas gotas quando percebeu que o sol nascia dissipando o bruma e iluminando o orvalho. “É tudo uma grande ilusão da qual faço parte, e mesmo que não faça...” .

Um suspiro de coragem, um último olhar pelo jardim, uma primeira volta entre as flores. Não estava distante, não acena adeus, e pela primeira vez disse:

- Venha!

Sons de uma vida

Não era exatamente uma questão de sentimentos ou de pessoas, talvez de memórias mal acabadas e histórias mal contadas. Mas era, definitivamente, uma questão de sons. A porta do carro batida pela única mão livre, enquanto a outra tentava equilibrar uma pilha de livros, a maleta e um copo de café. O toque do alarme preso em meio aos dentes que lutavam para acioná-lo, o som abafado de pés se desequilibrando ao atravessar a rua, o encontro da maleta surrada no portão, o som enferrujado do trinco sendo aberto, uma ou duas folhas de papel voando perdidas enquanto o último gole do café frio se perde em meio ao caminho até a porta de entrada.

Eram os sons habituais da casa velha, os ruídos de sua rotina, que a faziam sentir-se em casa. Pela janela do quarto, sempre aberta, vivia e ouvia os arredores da antiga casa da avó. Embora não ouvisse toda a história, fragmentos dela sempre se perdiam em meio o vento e a fumaça do esquecimento. Talvez a única lembrança inteira que tinha era do som do piano suavemente tocado pela avó quando era menina. O som das cordas sendo batidas tomavam a casa e sobrepunham todos os outros sons.

Tornou-se um habito com o passar do tempo associar sua vida, seus momentos aos sons, a música. Os pedais roçando na corrente, a janela castiga pela chuva, as unhas do cachorro arranhando o piso de madeira. Tateava cegamente procurando uma ordem, por um sentido, um acorde e uma melodia que fizesse suas notas esparsas terem sentido, contassem uma história, compusessem sua vida.

Se fosse contar sua história atual, contá-la-ia do final.

Um grande estrondo, uma pancada seguida pelo som ensurdecedor dos aplausos finais de um espetáculo. Não que houvesse um espetáculo, sequer havia uma peça, era, realmente, um monologo. Mas a sensação era essa, o sentimento era estrondoso, pesado, forte, destoava do restante da canção. Meu monologo começava com o som corriqueiro de um abrir de portas, era um bem-vindo, um bom começo. A porta realmente existia, o bom começo também. Atrás da porta não existia, porém, nada.

A confusão de sons e memórias são cartas embaralhadas de um carteado, soltas, difusas, uma chance em cinqüenta e duas de pegar a certa. O refrão era o som conjunto e confortável de mãos que se encontram, do colchão que afunda, de lençóis jogados no chão, o roçar do tapete no meu chinelo velho, o rangido da rede sobrecarregada, o balanço do jardim que sede com o meu peso, as flores do pergolado que dançam com o vento, as xícaras de café pousadas sobre a mesa abandonada da cozinha, a televisão ligada sozinha na madrugada, o ressoar da sua respiração no frio, os risos abafados pela vergonha. Sinfonias compartilhadas e momentos somados, não a uma, mas a várias pessoas.

Diria então que agora é hora de uma pausa, um silêncio. Nas memórias e na música, porque algumas coisas só a sobriedade do silêncio é capaz de expressar. Cinco segundos é muito tempo, um piscar de olhos é uma eternidade, uma batida do coração toda uma era. Foi como se tudo se suspendesse, foi um adeus com sabor de até logo.  Uma construção complexa e confusa que começa a tomar forma e sentido, as peças embaralhadas organizam-se, as cartas põem-se em ordem. A lógica inegável de um processo aparece no horizonte da minha alma.

Minimamente ruídos imperceptíveis e indispensáveis começam a somar-se ao todo. O roçar da grama nos pés descalços, as folhas secas amontoadas a um canto, o espirrar do vidro de perfume no quarto ao lado, o calor do bolo que exala da cozinha, a bruma da manhã que condensa o orvalho, a neblina da noite que esfumaça a janela, os pios do filhote de coruja que vela a lua. Tão pequenos como eu mesma sou pequenina, tão imperceptíveis e suaves como eu mesma, ocultos pela imensidão de um mundo que se perde em si mesmo. Tímidos sons que me formam, me integram, me descrevem. E que encerram, em mim (e na música) seu fim seu princípio, enterram em mim o que são e o que sou, guardam do mundo insentimental a pureza de meus defeitos.

Ouço os sons lá fora, não fora da janela (que me integra tão bem) mas fora de mim. Tão altos, tão brutos e ruges, o rugir dos carros, o insano tintilar das moedas, o apito da registradora, o bater dos cabides, roupas raspando na pele áspera e impregnada de fumaça, nada parece natural ou integrado, é tudo tão impessoal. O folhear das páginas ácidas das revistas, os gemidos insanos da televisão, o chiar alternado do rádio, tudo tão apessoal e robótico, sequer precem vozes humanas, ou tanto pessoas reais, são apenas fabricados.

Uma borboleta bate asas na janela fazendo as folhas soltas rodopiarem pelo quarto, até caírem dançando até o chão. Da cama, deitada, olho de resvalo à bagunça formada sobre o tapete. Ignoro. Estico-me e coloco (delicada) a agulha sobre o disco de LP, ruído amigo que me convida a lembrar. O som antigo, um clássico, começa a tocar, e não estou mais em meu quarto, mas nas ruelas de Londres, é outro lugar, um outro tempo. Levanto-me sobre o protesto das folhas de papel, procuro na estante algo para combinar com o som que vibra da vitrola. Um filme antigo, em preto e branco, na antiga Nova Iorque, quando tudo parecia mais bonito e elegante por atrás da fumaça de cigarros e piteiras e vestidos pretos e homens pagavam pelo toalete das senhoritas.

O som do calor exalado pelo bolo começa a espalhar-se pela casa, não é o mesmo de minha infância, já que os sinos fúnebres da igreja há muito já tocaram pela partida de minha avó, mas meu pai (alfa solitário dessa alcatéia de dois) o faz tão parecido, é quase o mesmo som sabor. O estalar do aparelho me avisa do começo do filme, jogo-me na cama afundando-me entre os travesseiros e lençóis. O vídeo chia, a vitrola estala, o mundo se cala.

Não sei

Olhou para ele com uns olhos que não eram seus. Não eram porque não poderiam ser, não lhe pertenciam, não aquela tristeza profunda de uma alma ferida. Olhou muda, porque não poderia falar, como diria a alguém que amava profundamente que não poderia dividir seus segredos mais profundos com ele? Queria, mas não poderia, ele não tinha forças ou a estrutura para lidar com suas angustias, uma mente perturbada pelo sótão e pelo porão da sociedade.

Era e sempre fora uma alma conturbada, levada a extremos, habituada a inquietude. Não poderia nunca ser diferente, não que não quisesse, era um de seus maiores desejos ser diferente do que era. Mas não poderia, devido a natureza de seu ser. Em seu âmago estava a raiz do pensamento. Tão profunda, tão densa, quanto uma abscissa, não poderia e não seria facilmente retirável de si, sendo um pilar edificador de si mesma.

O pensamento que a levava a angustia, a tristeza, a dor física, era o mesmo que a fazia levitar e transcender, elevar-se, não aos céus que estão vazios, mas ao homem, que está cheio, que é real e presente. Nada e tudo estavam dentro dela, o horror e o maravilhoso, os dois lados. Como explicar a alguém? Como dizer, eu não sei? Pois era, acima de tudo, formada de incertezas, de questões, de confusões, de teorias. Não tinha respostas, nenhuma delas, não para si mesma, pois queria sempre atingir o verdadeiro, o imutável, o concreto e a certeza, embora soubesse que nenhuma dessas coisas poderia existir (na verdade não tinha certeza sobre isso também). Poderia dar aos outros mil respostas, e eles acreditariam, pois não tinham a sua alma desesperada que se agarra em incertezas para não padecer em loucura. Tinha respostas para aqueles que não eram permeados por dúvidas.

Para ela, alma fadada a pensar, não tinha nenhuma, nenhum conforto, nenhum alento, nada. Tinha fome de respostas, fome de saber, e nada com o que saciar suas necessidades. Há aquelas como ela,  mas eles estão longe do mundo, que não quer respostas e não se importa com elas, eles estão solitários em sua busca, uma alcatéia de pensadores errantes.

Ele a olhou mais uma vez, inquisidor, aproximou-se, tomou-lhe a mão com ternura e olhou-a demoradamente nos olhos, como se quisesse de alguma forma, entrar-lhe na alma e descobrir quais feridas abrasadoras atormentavam a mente da garota. Ela piedosa, sustentou o olhar, em um último pedido suplicante de ajuda, que nunca chegaria. Deixou que ele olhasse e procurasse, quem sabe acharia em uma ruga de suas pálpebras, em uma pintinha de sua Iris, a razão de seu tormento. Mas ele não conseguiu passar pela janela e mergulhar no poço, não entrou e não viu, não achou. Sua alma continuou lá, por trás de seus olhos grandes, angustiada, e ele continuou ali, na sua frente, sem resposta.

Ela por outro lado, encontrou várias, olhando nos olhos sinceramente preocupados do rapaz a sua frente, achou carinho, achou medo e incerteza, achou também ali no canto a alma dele. Era uma bela alma, simples, leve, como as notas soltas do violão que ele sempre levava consigo. Não menos complexa e única por isso, apenas, diferente e leve. Era renovador e refrescante tê-lo junto a si. Ela quase poderia esquecer os pensamentos sombrios que lhe rondavam a mente e corroíam a alma.

“Eu não entendo” – ele sussurrou, e ela riu, não riu dele, riu dela. Ela sorriu e acariciou-lhe o rosto enquanto uma única lagrima solitária lhe marcava a face. “Nem eu” – ela sussurrou de volta.

A estranheza da situação e a familiaridade do sentimento a faziam rir da ironia. O silencio, segredo dos íntimos, era tudo o que os aproximava naquele momento, a ponte que os mantinha juntos. Não saber era o que fazia permanecer ali, tão pertos, tão unos. Não saber era, também, o que os estava afastando e os mantendo longe, pois ela não sabia sozinha, e ele não tinha opinião formada a respeito, já que não se importava em pensar sobre. Realmente fazer algo juntos, era, na verdade, o que os unia.

No rádio a música deles começava a tocar, e a voz calma de George Harrison preencheu o vazio deixado pelo silencio. O momento deles juntos já havia passado, e o silencio já havia se desfeito, ele sorria ao olhar para ela, seus pensamentos soprados para longe do “não saber”, os dela não. Ele a trouxe para mais perto, como sempre acontecia quando essa música tocava. Ela não cedeu como geralmente acontecia quando aquela música tocava.

Não, depois de dois anos, depois de tanto tempo, depois de tudo. Era tão leve estar ao lado dele, tão bom, era comum, normal e natural. Mas seus demônios pediam sangue e sofrimento, e não há sofrimento maior que o de pensar. A calma que a habitava nos últimos dois anos não iria continuar, todo o progresso que havia conquistado, toda a melhora, a levava agora a um outro lugar, mais alto, mais difícil de ser alcançado. Não iria regredir, não era essa a questão, apenas havia percebido que o pico era mais alto, e ficar parada a inquietava, precisava subir mais alto, não precisa conseguir, mas se obrigava a tentar.

Outras lagrimas caíram, e o sorriso dele se desfez. Ela não disse, não diria, ela nunca dizia, e ele sabia, a conhecia bem, não profundamente, mas bem. Um último adeus dava forma em um último beijo, que não sela um final, mas um novo começo, uma outra história. A de hoje começa com um último beijo, um olhar de até logo, algumas lagrimas, um “não sei” perdido no ar, e uma porta se batendo. Ela termina, em algum dia, em alguma hora, por ai, perdida no tempo de si mesma, forjada nos moldes que construiu para si, imperfeita.

Amigos Perdidos

Enfiou a mão na mochila e vasculhou pelas chaves. Olhou para o chaveiro que tinha umas peças faltando e sentiu-se tão vazia quanto a peça incompleta. Era uma sensação estranha que começava na boca do estomago, e subia até alojar-se no alto da garganta, sem subir ou descer.

Apressou-se pelo curto caminho até a porta, a luz do poste mostrava sua respiração na noite. Entrou em casa e atirou a mochila, subiu diretamente para o quarto, pegou o livro sobre a bancada e jogou-se na cama. Bateram na porta, o quarto mantinha-se em silencio, bateram de novo, continuou sem dizer nada.

As letras a sua frente não tinham foco algum, dragavam-na para dentro, em espiral, em um furacão para dentro de si. Tudo rodava na sua mente, as imagens, as falas, não conseguia organizar-se. Os sentimentos voltaram a tona, não deixavam com que pensasse claramente ou sequer sentisse, estava novamente em um misto de fúria, tristeza e indignação.

“Era noite e o bar estava escuro, parcialmente iluminado por luzes que por vez ou outra brilhavam, sem realmente clarear algo. Tocava algo com uma batida forte, e ela mexia o corpo junto com a música. Ele se aproximou como sempre fazia, mas dessa vez sorria diferente. Continuou dançando, e ele se aproximou, ela foi andando para traz até encontrar a parede, fugiu para o único lugar possível, abaixou a cabeça. Ele insistiu, ele tapou a boca com a mão. Ele foi embora, ela voltou a dançar.
Horas depois, o lugar estava quase vazio, ele disse que precisavam conversar, ela concordou. Ele disse coisas que a magoaram, e no começo ela exibia apenas uma expressão de indignação, depois ao perceber que ele falava serio, começou a chorar. Ele continuou falando, e ela sem aceitar, sem entender, extravasou o que sentia em um tapa no meio do rosto dele. Virou as costas e andou em direção ao taxi que a esperava.”

Aquilo tinha sido o final. Não sabia se era o final de tudo, ou apenas o final de um capitulo ruim a espera de uma retomada algumas páginas a adiante, na verdade, não tinha como saber. Sentada na cama, os dedos esbranquiçados por apertar o livro, encarava ora as palavras, ora o teto. Não via nada realmente, tentava em sua mente, formar uma lógica, um sentido para o que havia acontecido.  A sua frente via apenas o passado em conjunto.

Jogou o livro e levantou-se, andou de um lado para o outro. A cada passo levava uma das mãos ao cabelo e baixava a outra. Parou e virou-se para a janela com sua cortina esvoaçante. O vento revirava seus cabelos. Apoiou as mãos no parapeito e pulou para o telhado onde deitou-se ao sol. Tirou do moletom velho um maço de cigarros amassado e um zippo gasto, em um gesto mecânico acendeu um e colocou-o na boca.
Gestos mecânicos e automáticos ajudavam-na a pensar, era como se todas as coisas banais fossem limpas de sua massa cinzenta e ela pudesse pensar no que era realmente importante. No momento era realmente importante descobrir como aquela amizade podia ser classificada como incompleta. Eram iguais, não idênticos, mas iguais. Desde o momento que se conheceram, eles haviam se sentido ligados de alguma forma. Ela gostou dele pelo jeito estranho de falar, ele se aproximou dela pelo corte de cabelo diferente. Eram uma dupla singular, mas que dava conformidade ao conjunto, de alguma forma.


Ele sempre dizia, em meio aos risos, “Você é o meu eu-feminino, e eu sou seu eu-masculino”. Eram realmente parecidos, não na aparência, ele era moreno e ela loira, ele tinha olhos negros e ela azuis, eram quase idênticos na maneira de pensar, de agir. Uma amizade que surgira do nada, mas que completava a ambos. Nas tardes passadas sob a proteção da sombra que a árvore fazia. Aquela era a árvore deles. Haviam marcado seus nomes na casca da árvore, era um pacto. Lembrava-se quando, numa tarde qualquer, ele havia pedido a mão dela em casamento. E ela negara-lhe. Devia ter sido ali que tudo começou, e continuou com as recusas freqüentes dela. Até que ele desistiu, deveria ter percebido que afastara-se muito dele depois daquilo. Não, ele afastara-se dela. Mesmo quando muito tempo depois, haviam combinado de casar quando aos trinta e cinco anos ainda estivessem solteiros, sozinhos e sem um grande amor, ainda assim, não estavam mais tão próximos.

Sem levantar-se atirou a bituca longe, acendeu outro. Dos olhos semicerrados escorreu uma lagrima.

despertar de um Adeus

Ela não dizia não, apenas sorria. Também não dizia nada, apenas ia embora. Era seu jeito de ser, achava ser o melhor jeito para agir. Nem todos entendiam, muitos corriam atrás. Poucos percebiam que aquele aceno era um adeus, e não um até mais.
De longe tão encantadora, mas nunca chegara perto demais. Talvez pelo medo que sentia, talvez pelo amor que não queria. Não fazia promessas, não deixava esperança, era uma noite e apenas. Às vezes semanas, às vezes meses, não tinha pressa e nem tempo para ir. Sabia apenas, qual era sempre, o momento certo para partir.
Se pudesse dizer, diria desculpe. Se pudesse contar, seriam seus medos. Se pudesse parar, livrar-se-ia de seus segredos. Se pudesse deixar, daria seus sentimentos. Mas não podia e morreria antes de confessar que queria. Era apenas tão complicada quanto seus medos, e tão instável quanto suas inseguranças.
Quase não se lembrava do começo, fazia tanto tempo. Agora era só mais uma parte de sua natureza. Chovia. Correu porta a fora e deitou perto das flores olhou para cima. Atrás do manto de d’água escondiam-se as estrelas que tanto gostava. Tentou lembrar-se de como era o céu, sem a chuva e a neblina, não conseguiu. Desenhou em sua mente como seriam as estrelas, suas estrelas, brilhando na sua noite, do jeito que sua imaginação criará. Noite clara o bastante para espantar seus medos, bela o suficiente para não querer acordar nunca.
“É tão fácil sonhar e viver esquecendo da realidade”. Racionalmente sabia que apenas estava apunhalando-se. Talvez de nada adiantasse suas certezas e definições. Quem sabe com quais ilusões agarra-se a realidade.
Levantou e observou as flores, ao seu lado o silêncio e a solidão brincavam entre os lírios. Leais companheiros, porém, exigentes e possessivos, com o tempo acostumara-se com ambos. Caiam as últimas gotas quando percebeu que o sol nascia dissipando o bruma e iluminando o orvalho. “É tudo uma grande ilusão da qual faço parte, e mesmo que não faça...” .
Um suspiro de coragem, um último olhar pelo jardim, uma primeira volta entre as flores. Não estava distante, não acena adeus, e pela primeira vez disse:
 - Venha!

Máscara

Ela sorri encantadora, fascina. Os cabelos soltos embaraçam-se à brisa. Caminha com absoluta graça e elegância. É noite de carnaval. O salão abarrotado anima pela madrugada. Reina absoluta por entre máscaras. Essa, de agora, é negra e de cetim, é palpável. Por baixo esconde-se com outra máscara, a essa de branca porcelana, etérea. Tão suave, macia, a segunda não veste-se como máscara, não parece uma máscara, parece real.
Por um momento o mundo para. Sua negra máscara cai, levando consigo a outra. Um segundo de vislumbre de sua face. Um único olhar, um fugaz sorriso. E tudo acabou-se. A forte delicadeza volta a seu lugar, o olhar encantadoramente sedutor, o sorriso enfeitado de maldade a reluzir.
Uma máscara convidativa, uma armadilha. A noite passa, as pessoas vão, a claridade chega, a solidão senta-se a mesa. A mão delicadamente toca as máscaras. Receosa ela para por um momento, mas não há ninguém para ver. Retira calmamente a máscara de cetim, aos poucos a de porcelana desfaz-se, suspira cansada. Agora está real, verdadeira, pura. Por baixo de todo o festim, enfeites, festas, aparências ela surge. Simples. Nada de lânguidos e sedutores olhares, sem o encantador e maldoso sorriso, livre de todos estava livre para ser, enfim ela. 

Mágico de Oz

Há muito tempo não sei o que dizer, as palavras fogem de mim, e por vezes, eu mesma fujo. Confesso, estive evitando esse momento, embora não saiba ao certo dizer que momento seria esse. Talvez uma confissão sussurrada, talvez uma epifania existencial jogada ao vento.
Descobri, porém e somente, que esse momento é a viagem. Não se trata, no entanto, de uma viagem física, mas de algo bem mais sutil. É, na verdade, uma viagem de sonhos. Nesse estranho e revelador, sonho meu, havia um homem, não era um príncipe, não era um sábio, nem mesmo um mágico. Um homem comum, com características comuns, formado por sonhos e habilidades comuns, mas, notável e distinto por seus ideias. Esse homem buscava algo impossível, busca essa que nenhum outro sonhava em completar. E que eu, particularmente, achava impossível de ser completada. Mas isso porque tenho a imaginação pequena se comparada à desse homem notável que encontrei em meus sonhos. E por isso, jamais conseguiria completar a tarefa que ele realizou tão facilmente.
Havia muito tempo, eu perdera meu coração, se por lagrimas derramadas em demasia ou se por ilusões amorosas em excesso, não sei dizer. Tranqueio em um baú, perdi a chave e me esqueci do caminho que levava até ele.
Pacientemente, esse homem procurou, seguindo passos, pistas, memórias. Gota a gota de sangue e lagrimas ele se empenhou. Viagem a viagem, ele realizou, até mim, até as memórias, até o passado. Mesmo a Oz ele foi, em busca de um coração que pudesse me dar.
Perdida e confusa eu observei calada cada viagem, cada ida, cada esforço. Não entendia o porquê de tamanho esforço por algo que eu considerava sem valor. Tentei impedi-lo, tentei dizer não, e a única coisa que obtive foi fazê-lo trabalhar com mais afinco. Tinha medo, muito medo, e um medo cada vez maior, que ele encontrasse meu coração e do que aconteceria quando o fizesse. Em meio ao escuro que eu criara em volta de mim, não percebia as luzes se acendendo calmamente. Não percebia que meus sonhos haviam me tornado em meu maior pesadelo, mas que agora eu estava prestes a acordar.
Era completamente cega, não tinha o desejo de ver.
Ele aos poucos me mostrou como eu estava errada. Me acordou calmamente, tirando-me de meus sonhos e pesadelos ilusórios e irreais. Através de sonhos, encontrei a realidade. Percebi enfim, que meu coração não era sem valor, tinha valor para ele, e se tinha valor para ele (que era tão notável) deveria enfim, ter algum valor.
Depois de tanto tempo, lagrimas e sangue, repousando em uma de suas mãos, estava ali vivo e ardente, meu coração que por ele me foi devolvido. Ele sorriu-me e então fez com que meu coração disparasse feliz. Creio que ele não sabe da importância do que fez. Não devolveu-me simplesmente meu coração, devolveu-me a vida como a muito tempo eu não conhecia, devolveu-me as palavras.
Para alguém, que como eu, ficou tanto tempo no escuro, envolta por ilusões e mentiras, que eu mesma me contei, ver a luz do dia é um tanto quanto difícil. Mas assim como um bebe aprende a andar, eu aprendo a viver novamente, viver e conviver comigo. A tão difícil arte de conviver consigo, confesso que por vezes é muito difícil, e eu desejo estar na facilidade e no conforto da escuridão. Ele, é claro, não deixa.
Tenho a impressão que ele sofre mais que eu, ao me obrigar a enfrentar meus medos e dores. Assim como eu sofro mais que ele, ao fazê-lo suportar certas coisas que o fazem sofrer. Somos tolos, sofrendo mais do que precisamos, mas impedir esse sofrimento extra seria inimaginável.
Muitos anos se passaram desde que ele retornou com meu coração, e eu ainda luto para conviver comigo, é tão mais fácil conviver com ele. Eu o amo, como pensei que nunca voltaria a amar alguém, e causar sofrimento a quem amo é uma das provas mais duras que eu enfrentei. Talvez seja apenas eu, velha e tola, mas ainda sim, até hoje, vê-lo chorar ou sofrer é ainda pior do que o maior sofrimento pelo qual passei.
Ele foi e sempre será meu anjo, pelo qual agradeço todos os dias e todas as noites. Vê-lo sorrir, ainda acelera meu coração e faz me sentir como se eu tivesse 17 anos outra vez. Nunca consegui entender, porém, o que o levou a ter me salvo tantos anos atrás, às vezes, penso que foi tudo apenas um outro sonhos e que estou prestes a acordar, em outras penso que sou apenas uma mulher com muita sorte.

Última

O bip do relógio alertou as horas. Continuei deitada, entre desperta e sonhando, enquanto ele levantou-se e recolheu suas roupas espalhadas pelo quarto, fazia isso em silêncio, soturnamente. Espreguicei-me na cama e observei- vestindo-se. Ele sorriu-me levemente envergonhado, ignorei suas reações, queria guardar bem aquele momento, pois seria o último.
Naquela noite mais cedo, ao ver seu nome no visor do meu celular percebi que aquilo teria que terminar. Nada estava saturado em nossa inconstante relação de noites, mas eu não podia mais sustentar aquela situação. Ele inclinou-se, e eu sabia que era para me beijar, normalmente eu não o aceitaria, mas aquela era a última vez. Seria uma despedida. Beijei-o, um beijo cálido, calmo, carinhoso. E, talvez, pela primeira vez ele olhou-me, realmente, nos olhos. Senti que naquele momento nós nos conhecemos, depois de tanto tempo. Colocou a mochila nas costas e saiu, dali a alguns minutos, ouvi o carro dando partida, pela última vez.
Esparramei-me novamente na cama, o perfume dele impregnado nos travesseiros, nosso cheiro pairando no ar. Levantei-me enrolada no lençol e abri a janela, a brisa matinal entrou fresca. Deitei-me na cama, o aroma não passando de uma leve lembrança. A luz morna e aconchegante do sol embalando em um sono calmo.
A presença dele agora mal aparecia na minha bagunça, a noite com ele, a última e todas as outras, eram apenas murmurios vagos, sonhos fracos e distantes. Adormeci em sonhos brancos, placidos, ladeada por um a parca ausência de uma presença que parecia ter estado ali.